a Casa da Torre de Garcia d`Ávila

February 3, 2018 | Author: Anonymous | Category: N/A
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Associação Nacional de História – ANPUH XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - 2007 Família, Propriedade, Tradição e Poder no Nordeste Colonial: a Casa da Torre de Garcia d’Ávila. Ângelo Emílio da Silva Pessoa* Resumo: Discutimos aspectos da colonização lusitana na América, enfocando a tessitura das redes de poder entre a Coroa e os súditos, em especial no que tange à relação entre as autoridades metropolitanas, o poder local, as famílias de grandes proprietários estabelecidos nas suas Casas e à população em geral. Discute-se a noção de Casa numa acepção particular da época, que a relaciona à família patriarcal, à sua rede de dependentes e ao patrimônio. Palavras-chave: Família, Poder, Colonização

Abstract: The purpose of this article is to debate some aspects of Portuguese colonization in América, focusing the power relations nature and composition between Crown and the subjects, analysing especially the relationship between metropolitan authorities, the local power, the big properties families established in their Casas, and the population generally speaking. We discuss the notion of Casa in his particular meaning at that age, which is related to the patriarchal family, its network of dependents and their patrimony. Keywords: Family, Power, Colonization

“repugnam tanto os homens a deixar arrancar de si aquilo que se lhes tem convertido em carne e sangue, ainda que seja para o bem de sua casa, de seus filhos, que para isso traçou Deus tirar a costa a Adão, não acordado, senão dormindo. ... Com tanta suavidade e como isto, se há de tirar aos homens o que é necessário para sua conservação. Se é necessário para a conservação da pátria, tire-se a carne, tire-se o sangue, tirem-se os ossos, que assim é razão que seja; mas tire-se com tal modo, com tal indústria, com tal suavidade, que os homens não o sintam, nem quase o vejam” Padre Antônio Vieira. Sermão de Santo Antônio (14 de Setembro de 1642) (VIEIRA, 1995: 11-12)

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Doutor em História Social pela USP (2003) e Professor de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Nova Andradina.

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Setembro de 1642. Lisboa. Véspera das Cortes. Nesse ambiente, marcado pela Restauração portuguesa e pela pressão espanhola, o equilíbrio de forças era bastante precário1. A imperiosa necessidade de manter a independência e a Coroa de D. João IV, implicava na (re)montagem da cadeia de comando real, espalhando-se de Lisboa para os quadrantes do Império. Era fundamental a garantia da lealdade dos súditos em todos os níveis, o que implicava numa complexa teia de interesses que unia desde a alta burocracia da Corte até o mais humilde súdito, no mais recôndito lugar das colônias. Frente às prementes necessidades fiscais, se impunha a delicada questão dos limites toleráveis aos governados para lhes serem arrancadas as costelas, ou os cabedais de suas casas. Como estabelecer, em tais condições, um justo equilíbrio entre a autoridade da Coroa e a lealdade devida pelos súditos? Como possibilitar que o Rei fosse, ao mesmo tempo, o pai brando e o implacável cobrador de tributos? Em épocas tão tumultuosas, esses delineamentos eram ainda mais delicados; sua solução implicava numa complexa tessitura de relações, que permitissem a reiteração de uma difícil soberania e independência ante circunstâncias tão desfavoráveis. Num quadro internacional tão inseguro, cumpria se estabelecer, no plano mais particular – o da relação entre a Coroa e seus súditos – o outro lado da questão. Sobrevivência, no plano externo, consolidação do aparato de poder, no plano “interno”2. Tal consolidação implicava em fazer valer as diretrizes reais e a atuação coerente de seu corpo de funcionários sobre o território do Império, periclitante desde o início do XVII. Nesse cenário, retomamos trecho de Vieira, para discutirmos alguns aspectos da questão: “repugnam tanto os homens a deixar arrancar de si aquilo que se lhes tem convertido em carne e sangue, ainda que seja para o bem de sua casa, de seus filhos”. Como conciliar as necessidades da Casa Real e os interesses da Casa de seus súditos? Ressaltamos a noção de Casa, tal como então se apresentava. Casa, mais do que residência, significava, segundo o Padre Bluteau, em seu Vocabulário de início do setecentos: “Casa. Geração. Família... Illustre, & antiga casa... Que he de huma boa, & de huma grande casa... Homem de casa humilde, & baixa... Lançar a alguem no rosto a baixeza da sua casa... Casa. Moveis. Criados, &c.” (Bluteau. Tomo II, 1712: 174). Transcendendo a moradia, a Casa era a reunião da família, sua rede de dependentes e o seu patrimônio. Ser chefe de uma grande casa era ter uma parcela de poder e prestígio. Pertencer também a uma Casa era estar 1

Esse contexto em Evaldo Cabral O Negócio do Brasil e em BOXER. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola. 2 O “plano interno” do Império corresponderia não apenas a Portugal, mas ao conjunto de suas colônias na América, África e Ásia.

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vinculado a um grupo, possuir uma marca de distinção numa sociedade profundamente hierarquizada; mesmo para um homem de baixa extração social, afirmar-se como “homem de alguém” implicava em usufruir um pouco de seu prestígio e seu poder. O poder das maiores Casas, que chegavam a fazer frente à autoridade real, é questão bastante discutida. No que tange à colonização da América lusitana, já se gastou muita tinta sobre a parcela de iniciativa particular nesse processo. Autores clássicos defenderam a existência de fortes traços feudais na colônia brasileira3. A constituição das relações de poder no mundo colonial e suas heranças para a sociedade brasileira suscitou debates em décadas passadas. Defendendo a preeminência da Coroa, ou a primazia do poder privado e da governança local, esses autores debatiam com a uma questão que se referia ao momento no qual viviam, de profunda reconfiguração do Estado em relação às mudanças da sociedade brasileira. Inicialmente, vamos à questão: quem eram os agentes da colonização, que se espalharam pelo Império Ultramarino lusitano? Em linhas gerais, eram governantes e funcionários da Cora de graus diversos, eclesiásticos de várias ordens e aventureiros de alémmar. Esses agentes, associados de várias maneiras às populações locais, ou combatendo-as, deram sustentação às bases do Império. A depender da região, as relações entre esses agentes e as populações locais ganhavam configurações peculiares. Entre a associação, o extermínio e a miscigenação, oscilaram as complexas formas de relação entre os lusos e seus descendentes no mundo colonial e as populações autóctones. Se os principais postos de governança eram apanágio de gente proeminente, nos governos e postos locais se imiscuíam súditos de passado obscuro e modesto. Esses súditos, com alguma sorte e capacidade de empreender, obtinham terras, cargos, buscavam honras e mercês; seus descendentes, enraizados na nova terra e distantes do reino, douravam suas origens e mimetizavam o comportamento da nobreza do Reino, aspirando um status diferenciado naquela sociedade. No início do século XVII, nos seus Diálogos das Grandezas do Brasil, Bradônio chamava atenção:“esses povoadores, que primeiramente vieram a povoar o Brasil, a poucos lanços, pela largueza da terra, deram em ser ricos, e com a riqueza foram logo largando de si a ruim natureza, de que as necessidades e pobrezas que padeciam no Reino os fazia usar. E os filhos dos tais, já entronizados com a mesma riqueza e governo da terra, despiram a pele velha, como a cobra, usando em tudo de honradíssimos termos” (BRANDÔNIO, 1997: 106-107). 3

Obras que propugnavam o feudalismo ou esses “traços feudais” foram examinadas de maneira geral em nossa Tese “As Ruínas da Tradição”, defendida na USP em 2003.

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Dois séculos depois, Luís dos Santos Vilhena, observava que “a duração dos tempos tem feito sensível confusão entre nobres, e abjetos plebeus: outros há que se honram em deduzir a sua prosápia dos caboclos, ou índios, quando outros se gloriam de descenderem de alguns ilustres governadores... ou de algumas das diversas personagens, que em vários tempos aqui aportaram” (VILHENA: 1969:51-52). Nos fins do século XIX e durante o XX, descendentes dessas mesmas famílias continuaram enobrecer seus antepassados, construindo genealogias onde abundavam nobres europeus e princesas indígenas, construindo tradições sobre as ruínas do passado. Quer chamemos esses poderosos da colônia de nobreza da terra, ou de outra denominação, eles se tornaram a base da governança local, exercendo mando frente à sociedade colonial e apresentando, não raro, resistência às diretrizes emanadas da Coroa. Quando o Estado precisava arrancar de suas Casas (mesmo que para o bem delas) o que era necessário à conservação da Pátria, encontrava limites à sua ação. Entre a as parcelas mais pobres da população e as autoridades da Coroa, encontravam-se famílias enriquecidas, que exerciam o mando diário em nome do Rei e em defesa de suas Casas. Discutiremos mais a vagar as relações entre uma dessas Casas, as autoridades coloniais e parte da população submetida ao seu mando. Trata-se dos Dias d’Ávila, destacada família baiana que criaram a renomada Casa da Torre. Em 1549, junto com Tomé de Souza, chegou à Bahia um indivíduo de obscuras 4

origens , chamado Garcia d’Ávila. Exerceu o cargo de Almoxarife e pouco depois renunciou ao mesmo, obtendo sesmarias para criação de gado ao norte de Salvador. Em sua vida, reuniu vasto patrimônio, legado aos seus descendentes, que o ampliaram ao longo de dez gerações e três séculos. Provavelmente, não haverá família colonial que tenha obtido tamanho prestígio; a sua principal propriedade, a Casa da Torre de Garcia d’Ávila – cujas ruínas remanescem tombadas pelo IPHAN – marca o poderio dessa família e o prestígio que ela conseguiu amealhar. Impossível detectar o número de citações, em livros, artigos ou Teses, que existem sobre a Casa da Torre, que deu azo mesmo a de diversos livros, onde pontificam Pedro Calmon e Moniz Bandeira. A Casa da Torre seguiu a trajetória de nobilitação possível no Novo Mundo: um indivíduo arrojado, sem ascendência fidalga, com favores governamentais, obteve fortuna pessoal e conseguiu legá-la aos descendentes, mestiços com indígenas, que a ampliaram e

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Genealogistas e historiadores buscaram uma linhagem nobre para Garcia, sugerindo até sua filiação bastarda a Tomé de Souza, a questão permanece como conjectura, já que não se conseguiu, até o momento, determinar uma filiação para Garcia.

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assumiram o ethos de uma nobreza da terra. O Rei e seus Ministros, na distante Metrópole, não poderiam prescindir dos bons serviços de tais súditos, que deveriam ser leais e prestar bons serviços, esperando as merecidas recompensas, em forma de mercês, cargos ou honrarias, que viessem do Soberano. Os Ávila obtiveram notável ascensão econômica, baseada no controle de extensas propriedades territoriais, na pecuária e no abastecimento. Se empenharam em participar da governança da terra, de forma a manter e ampliar seu patrimônio e expandir seus negócios. Em certas circunstâncias, esses negócios sofreram a intervenção de autoridades, a fim de frearem seu poder particular frente às necessidades e interesses da Coroa. Após obter as primeiras sesmarias ao norte da Bahia, em Tatuapara, Garcia d’Ávila construiu uma Casa-Torre, conforme o Regimento de Tomé de Souza, uma vez que suas terras situavam-se em área estratégica. Até o século XIX, essa Torre foi um ponto importante de observação da costa e de apoio à defesa da Capital, conforme diversos mapas nos quais ela aparece. Na segunda metade do XVI e início do XVII, Garcia expandiu seus currais ao norte de Salvador, tornando-se grande fornecendo gado para a capital. Sua fortuna foi admirada por Fernão Cardim, que o visitou em 1583: “é nessa Bahia o segundo em riquezas por ter sete ou oito léguas de terra por costa... Tem tanto gado que não lhe sabe o número” (CARDIM, 1980: 154). O que foi confirmado por Gabriel Soares de Souza em 1587: “Aqui tem Garcia d’Ávila, que é um dos principais e mais ricos moradores da cidade do Salvador, uma povoação com grandes edifícios de casas de sua vivenda” (SOUZA, 1987: 70). Garcia exerceu a vereança na capital, mas sua principal base de poder estava no controle de índios aliados em armas, moradores nas imediações da Torre, aos quais se vinculou através de parentesco. De uma dessas uniões nasceu sua filha natural, Isabel d’Ávila. A herança de Garcia passou a seu neto Francisco Dias d’Ávila, filho de Isabel com o também mameluco Diogo Dias (neto do célebre Caramuru). Por volta de 1610, Francisco Dias era dos homens mais ricos da colônia, casando-se com Ana Pereira, filha de homem de confiança de seu avô. Houve, a partir daí, vários casamentos entrelaçados com famílias aparentadas, os Pereira Gago e os Marinho Falcão. A trajetória da Casa da Torre, até a época da Independência, suscitaria várias questões, mas iremos aqui nos ater a duas: a primeira a dos conflitos entre os Ávila, os missionários e autoridades sobre a questão indígena; a outra, a instituição de um Morgado pela família no final do século XVII. Garcia d’Ávila participou da conflituosa conquista de terras entre Sergipe e o São Francisco, na segunda metade dos quinhentos. A expansão dos seus currais chocou-se com as

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populações locais, que reagiram, levando a refregas entre 1550 e o início do século XVII. Desde os primeiros ensaios de conquista e colonização, duas posições grosso modo se alternavam: tentar ganhar os índios pela amizade ou combatê-los com vigor. Tais situações variavam de acordo com circunstâncias específicas. As distintas percepções das relações entre os colonos e os indígenas opunha os missionários católicos, os proprietários de terra e os representantes da Coroa. Como protegido de Tomé de Souza, Garcia granjeou simpatia dos jesuítas, especialmente do Padre Manuel da Nóbrega, quando colaborou com o aldeamento do Bom Jesus. Suas relações de parentesco com índios da região, lhe possibilitaram o acesso a mão de obra para o criatório e outras produções, além de homens em armas, tendo em várias ocasiões as tropas da Casa da Torre combatido inimigos indígenas e europeus. O bom convívio com os inacianos se acabou, quando os negócios e a “fome de braços e terras” fizeram declinar o “fervor catequético” do rico fazendeiro. Em 1559, Nóbrega enviou Carta a Tomé de Souza, com queixumes contra Garcia: “tinha elle uns índios perto de sua fazenda... pedio-me lhe alcançasse do Governador que lhos deixasse, promettendo elle de os meninos yrem cada dia à escola de Sant Paulo..., e os mais yrião aos domingos e festas à missa e pregação. Concedera-lho, mas ele teve o mao cuydado de o cumprir, sendo de my muytas vezes amoestado, antes deixava viver e morrer a todos como gentios” (LEITE, 1954: 94/95). Em 1667 a Casa da Torre destruiu aldeamentos jesuíticos no sertão do São Francisco, gerando grande polêmica. Mas o conflito mais célebre foi o com os capuchinhos, registrado na Relação do Padre Martinho de Nantes, publicada na Europa, em fins do século XVII. Entre 1660 e 1680 os capuchinhos missionaram na região. A proximidade dos currais dos Ávila com os aldeamentos gerou fricções que resultaram em confrontos armados, com inúmeras de vítimas e escravização dos sobreviventes. Segundo Martinho: “O interesse de alguns particulares, que haviam colocado seu gado nas terras dos índios, sendo combatido por alguns missionários, que eles próprios haviam chamado mais para a segurança de seu gado que pelo zelo da conversão dos índios, como os acontecimentos nos fizeram compreender, atiraram-se contra nós e empregaram todos os meios possíveis para nos afastar” (NANTES, 1979: 45). As diatribes do capuchinho se voltaram contra o Coronel Francisco Dias d’Ávila, tataraneto de Garcia d’Ávila e principal denunciado: “Avisei a Francisco Dias de Ávila, pedindo-lhe, que por todos os meios capazes de o enternecer, para retirar seus cavalos, pois que reduziam os índios a morrer de fome. Ele apareceu, certo Domingo, na região, para ouvir missa e, depois do que lhe expus de viva voz, respondeu-me que o que eu lhe pedia não o incomodava e que por isso não faria nada” (NANTES, 1979: 60).

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Não nos alongaremos nessas disputas, que envolviam recursos às autoridades, com queixas e acusações de parte a parte, com diferentes posicionamentos dos governantes, conforme as suas possibilidades ou conveniências. Tais disputas, no entanto, ganhavam outro enquadramento, quando estava em jogo a própria colonização. Os Padres Nóbrega e Martinho, separados por pouco mais de 100 anos, participaram de repressão a rebeliões indígenas. Ainda em 1550, Nóbrega participou dos combates aos índios de Ilhéus ao lado do Governador Mém de Sá. Em 1676, o Padre Martinho e seus índios aldeados participaram da repressão aos anaios, próximos ao Rio Salitre, sob o comando de Francisco Dias d’Ávila. Segundo seu relato: “acompanhamos as pegadas do inimigo, que foi encontrado.... quase sem armas e morto de fome. Renderam-se todos, sob a condição de que se lhes poupassem a vida. Mas os portugueses, obrigando-os a entregar as armas, os amarraram e dois dias depois mataram a sangue frio, todos os homens de armas, em número de quase quinhentos, e fizeram escravos seus filhos e mulheres” (NANTES, 1979: 53). Mesmo observando-se diferenças entre os propósitos dos missionários, dos proprietários e dos governantes, havia situações de convergência, quando se colocava em jogo as bases da colonização, tanto que, para além das disputas pontuais, tais agentes se uniram quando a necessidade os obrigou. Em 1678, Isabel d’Ávila, sobrinha do Coronel, fugiu da Torre com Manuel Pais da Costa. Sua mãe, Catarina Fogaça e sua avó Leonor Pereira (irmã e mãe do Coronel) ordenaram a captura dos fugitivos. Acobertado por poderosos inimigos dos Ávila o casal conseguiu asilo no Convento dos Carmelitas de Salvador, onde contraiu núpcias. Abriu-se um rumoroso caso, que se arrastou por anos e que colocou os interesses mais particulares da Casa em choque com inimigos. Uma das situações mais delicadas era a da herança da jovem, que não interessava à família dividir; assim, as partes envolvidas disputaram judicialmente os bens. Acirrada demanda entre Pais da Costa e Catarina Fogaça se seguiu, culminando, em 1681, com a deserdação de Isabel e seus descendentes e a instituição de um Morgado, em favor do Coronel Francisco Dias e sua esposa Leonor Pereira Marinho, irmã caçula de Isabel. Todos os bens da Casa da Torre foram vinculados ao casal, para que não fossem objeto de partilha futura. Observamos nesse incidente uma situação na qual a Casa, mesmo aspirando autonomia frente ao poder da Coroa, a ele recorreu quando se viu ameaçada por inimigos poderosos. Foram jogados vários lances judiciais, nos quais as autoridades locais influíram a favor de um dos dois lados. Stuart Schwartz mencionou as queixas de Pais da Costa contra o Vereador Tomé Pereira Falcão (irmão de Vasco Marinho Falcão, finado pai de Isabel d’Ávila), que

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influenciou os Desembargadores da Relação no andamento do caso5. Essas relações íntimas entre as esferas governamentais e os negócios de famílias não eram específicas desse caso, mas eram parte inerente das formas usuais de exercício do poder. Voltamos à citação inicial de Vieira, quando se referia à retirada de bens das Casas para o bem do Reino, para que eles servissem como o sal que conservaria a terra. Destacamos aí a questão das composições de poderes entre os delegados da Coroa, as Casas mais abastadas e os súditos mais humildes. Apesar das Casas ou autoridades locais buscarem “brechas” por onde pudessem exercer seu mando sem depender da autoridade real, a reconheciam e a ela recorriam quando periclitava a sua situação. A composição de forças era bastante delicada e complexa, mas a Coroa apresentava-se como poder supremo, ao qual recorriam os súditos, quando se tratava de defenderem suas posições contra inimigos ameaçadores. Esse inimigo não se situava apenas no nível das rivalidades entre potentados locais, mas também num plano mais amplo, qual seja, na grande massa de homens pobres, índios e escravos africanos que sustentavam essas Casas e todo o Império através da exploração do seu trabalho e da espoliação de suas terras. Evaldo Cabral chamou atenção desse aspecto em relação à feroz disputa entre a açucarocracia olindense e a mascataria recifense na Guerra dos Mascates, no início do século XVIII. Naquela ocasião, à parte as rivalidades existentes, houve composições entre senhores e engenho e comerciantes, quando os homens livres e pobres e escravos se insurgiram e ameaçaram os fundamentos da colonização6. As distintas composições de poderes entre os governantes e os potentados locais, abrangiam situações que variavam desde a oposição entre grupos (que sacudiram algumas Capitanias) até o estabelecimento relações muito íntimas e laços de parentela. Essas configurações variavam em cada região e dependiam de situações que, às vezes, escapavam do controle desses agentes, como as alarmantes rebeliões de indígenas ou de escravos africanos, que levavam à conciliação entre inimigos jurados e rivais de véspera. Outro problema era o do limite entre o cumprimento estrito das ordens da Coroa e a margem possível de sua imposição. Estabelecia-se um difícil e penoso equilíbrio, agravado pela remuneração irregular dos administradores, que eram forçados a buscar suas próprias rendas na colônia e comprometiam sua isenção à frente dos assuntos locais. Abria-se o caminho dos negócios à sorrelfa. Não era raro que governadores e funcionários reais se aliassem a grupos

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SCHWARTZ, S. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979, pp. 269-270. MELLO, Evaldo C. de. A fronda dos mazombos: Nobres contra mascates – Pernambuco 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 398-402. 6

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locais, ingressando seus desafetos numa oposição, que às vezes descambava para o confronto violento entre as partes. Nesse aspecto, as Casas faziam coro em relação ao gasto de suas fazendas para a defesa dos interesses reais, que muitas vezes e em larga medida, coincidia com o seu interesse, como fica explícito em uma Carta de Sesmaria da Casa da Torre em 1657: “há terras que nunca forão povoadas de gente branca e habitadas somente de Índios... que nunca tiveram comercio com brancos por cujo respeito não houve ate agora se atrevesse a descobrillas (...) lhes forão dadas de Sismarias (...) fazer com muito risco de suas vidas e dispendio de muita fazenda e gados que deo aos ditos Índios para tãobem criarem (...) de que tem rezultado muito proveito A Fazenda de Sua Magestade nos Dízimos que estão pagando” (APEB. Maço 602,1813. Grifo nosso). Fica evidente a intrincada e, às vezes, contraditória gama de interesses a ligar a Coroa aos poderes locais. Esse trânsito de influências gerava uma permanente necessidade de ajustes, especialmente em situações-chave como a do período posterior à Restauração, quando se faziam incertos os destinos do Reino e do Império colonial. Numa quadra de tal complexidade, a ação das autoridades em busca de governabilidade implicava em precários equilíbrios de força e arranjos institucionais delicados. Entretanto, as oposições entre os agentes da Coroa e os grupos locais pela partilha do poder, mesmo envolvendo uma complexidade que não pode ser desprezada, ganhava outros contornos quando o que estava em jogo, mais que a parcela de poder que a cada qual caberia, era a própria base do exercício de seu poder, ou seja, a sujeição de uma numerosa população colonizada aos desígnios de um poder colonizador que sobre ela se construía e exercia.

Referências Bibliográficas e Documentação:

BANDEIRA, Luiz A. M. O Feudo: a Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões à Independência do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

BOXER, C. R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola (1602-1686). São Paulo: Nacional/ Edusp, 1973.

BRANDÃO, Ambrósio Fernandes [1618]. Diálogos das Grandezas do Brasil. 3 ed. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/ Massangana, 1997

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CALMON, Pedro. História da Casa da Torre: uma dinastia de pioneiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1939.

CARTA DE SESMARIA do Capitão Garcia de Avilla, o Padre Antônio Pereira..., moradores na Torre, Districto da Cidade da Bahia (1657). Arquivo Público do Estado da Bahia. Casa da Torre (Alvará e Escritura). Maço 602, 1813.

LEITE, Serafim (org.). Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. 3 vols. São Paulo: Comissão do IV Centenário, 1954.

MELLO, Evaldo C. de. A Fronda dos Mazombos: Nobres contra mascates – Pernambuco 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

MELLO, Evaldo C. de. O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 16411669. 2 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.

NANTES, Martinho de. Relação de uma Missão no Rio São Francisco. São Paulo: Nacional; Brasília: INL, 1979.

SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: A Suprema Corte da Bahia e seus Juízes – 1609-1751. São Paulo: Perspectiva, 1979.

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